Zaira Belintani
Há que se trabalhar alma, corpo e mente, respirar fundo, ouvir a voz do coração.
Textos

POEIRA DO TEMPO


No meu tempo de infância, criança não falava em conversa de adultos. Visita era recebida na sala, com cerimônia. Minha mãe servia o café no aparelho de louça antigo, que somente nessas ocasiões saía da cristaleira. Eram vizinhos os que vinham para uma boa prosa, após um dia longo e cansativo.

Toda manhã, os operários saíam cedinho rumo à Siderúrgica, onde trabalhavam para prover o sustento das famílias. Ao Pôr do sol, regressavam exaustos. Caminhavam em grupos, comentando coisas de rotina.
A lida doméstica das donas de casa começava tão logo seus companheiros saíam para o trabalho. As trilhas estreitas e escorregadias que davam acesso às nascentes, eram percorridas dezenas de vezes. Lá se lavavam roupas e vasilhas. De lá se transportava a água utilizada nos serviços domésticos. Gotas do precioso líquido iam salpicando o caminho, enquanto as latas equilibradas nas cabeças oscilavam ao ritmo dos passos das mulheres. Apesar de toda a faina, elas sempre arranjavam tempo para atualizar os fatos do bairro, ora durante os encontros na bica, ora através das cercas de bambu que dividiam os quintais.
No bairro recém-povoado e um tanto isolado do centro da cidade, a vizinhança ainda mantinha certa distância enquanto se estudava, avançando cautelosamente pelo território das diferenças, para construir aos poucos a arte da convivência. Ao passo em que a desconfiança diminuía, cresciam as intimidades, e com elas a inconveniência. Vez por outra aconteciam desentendimentos gerados mais por ciúmes de uma vizinha dar atenção à outra, que por incompatibilidade de opiniões. Burburinhos aumentavam, gerando rixas com agressões verbais de palavreado impróprio. Havia sim, uma disputa de território no campo da “amizade” entre as mais exacerbadas. Felizmente a maioria cuidava de viver amistosamente. Minha mãe era um exemplo.

Nesse cenário de fim de mundo ou começo de tudo, nossa vida era brincar. Tínhamos Direito Adquirido, desde que fôssemos obedientes, realizando tarefas como olhar o irmão mais novo, ou varrer o terreiro, ou tratar das galinhas, ou regar as plantas. Famílias numerosas, uma tarefa para cada filho. Depois, era só diversão e algazarra!
À tardinha, o movimento cessava. Minha família costumava reunir-se após o jantar para ouvir programas musicais no rádio e relaxar antes de rezar para dormir. Embora não tenha havido nenhuma convenção oficial, a comunidade concordara que esse era o momento propício para as visitações. Tão logo chegavam, já se despediam, para não causar incômodo. Tiravam a poeira do corpo com água trazida da bica. Trocavam a roupa do dia pelo vestido novo, pelas calças limpas. Aproximavam-se solenes, batiam na porta. Valente sempre reservava os latidos para a madrugada, quando os vultos da noite escura se tornavam ameaçadores. Com gente, não via perigo. Levantava-se sem pressa do aconchego de sua cama no cantinho do jardim, espreguiçava, coçava o focinho, caminhava até os fundos da casa para, com sua presença, nos avisar da invasão. Depois voltava para o seu posto de vigia e continuava a cochilar…
Papai abria a porta, seguido por mamãe.
– Boa noite, compadre!
– Boa noite, comadre!
– Com’vai, compadre?
– Bem, como Deus é servido!
– E o senhor, como vai com sua família?
– Tamos aí! Mas vão entrando, vão sentando!
Eles entravam e sentavam ao redor da mesa, quase sempre coberta por uma toalha branca bordada com motivos florais, tendo como adorno um belo elefante em gesso pintado em tons de cinza, que papai havia arrematado em um leilão na quermesse da Boa Viagem.
As crianças exibiam laços de fita nos cabelos penteados e olhos curiosos que não se demoravam abertos, no embalo do colo dos pais (nada de sair a bagunçar casa dos outros a essa hora!).
Feitas as atualizações do cotidiano, a conversa seguia outro rumo. Geralmente chegavam mais um ou dois vizinhos e se uniam em volta da mesa. O discurso casual e vulgar que enchera de alarido o dia agitado, agora vinha também de página nova, revestido de seriedade. As vozes ganhavam uma entonação grave. A linguagem era simples, mas evidenciava uma cultura secular e diversificada, que evoluía enquanto perpassava de geração a geração.
Eu permanecia meio invisível, calada. Assim aprendi as primeiras lições de Sociologia, Filosofia, Economia, Ética, História do Brasil. Ouvi comentários sobre a Política do Governo, a Ditadura, o Golpe Militar, a Carestia, Meu Deus!
Pronto!
Notando minha presença, mamãe ordenava que eu me retirasse da sala, baixavam o tom de voz. Eu pulava da cadeira, emburrada, fazendo bico. Dirigia-me para o quarto, trancava a porta e, colando meu ouvido na parede, continuava a escutar. Pedaços de palavras aqui, frases interrompidas ali, sussurros acolá…

As reuniões geralmente traziam informações cujo teor eu ainda não entendia, mas minha memória as dividia e classificava em úteis, para serem usadas no futuro e inúteis, para serem descartadas. Úteis para mim eram os assuntos proibidos. Eram os que mais me atraíam. Seus mistérios iam formando símbolos e imagens fantásticas na minha mente, povoando meu pensamento com ideias tontas, forçando-me finalmente a indagar o sentido de tudo aquilo. Como aquela palavra nova que fez com que minha mãe me expulsasse da sala. No dia seguinte, aproximei-me quando ela guardava a louça usada com os visitantes. Fazendo rodeios, demorei um tempo desenhando com o dedo sobre o pó da cristaleira, criando coragem. Perguntei casualmente:
– Mamãe, o que é carestia?
Ela se empertigou, tomada de surpresa.
– Menina, eu não te falei para não prestar atenção em conversa de adultos?! Anda, vai brincar, como todo mundo!
Não me dei por vencida. Contornei a mesa:
– Papai, o que é carestia?
Com ele falávamos mais alto, porque um inseto havia entrado em seu ouvido quando menino, perfurando seu tímpano (eu falava pântano); e ele passou a escutar só um pouquinho. Escutava pouco, mas ouvia muito e sabia de tudo. Atencioso, meu pai interrompeu a leitura. Fechou o livro, marcando a página com o indicador direito e, franzindo a testa, começou a me explicar que se tratava da crise econômica que gerava um encarecimento do custo de vida. Em outras palavras, o salário que recebia era insuficiente para saldar as dívidas junto à Cooperativa fornecedora de alimentos e outros víveres; e ainda havia a prestação da casa para aumentar as despesas. Nesse momento eu juntei os fragmentos colhidos em minhas escutas e constatei o que já vinha suspeitando: carestia era um monstro faminto que devorava tudo o que via pela frente e viajava pelo mundo numa locomotiva escura, transportando vestígios da guerra. Mamãe, sábia, percebeu na hora a minha cara de espanto. Sei disso porque captei o comunicado silencioso que ela enviou e que papai apanhou no ar. Na verdade, foi só um pequeno gesto e expressão facial, mas teve o poder de fazer com que ele retomasse a leitura, impedindo-me de continuar o interrogatório.

Na medida em que a vida me amadurecia, comecei a ter ciência do introspectivo. Adquiri a compreensão de que, na ausência de palavras, os gestos e olhares também falam. Mas como adivinhar o subjetivo? Por mais que eu tentasse, jamais consegui traduzir um olhar abstrato. Como o de meu pai, quando permanecia horas a cismar, contemplando o nada através da moldura da janela, seus olhos claros buscando a luz do fim de tarde, muito além, onde o perfil dos montes revelava um horizonte de incertezas! Como aquela luz fugidia eu o via distanciar-se de tudo, de mim, tornando-se inalcançável. Nisso ele me pegou! Sem som, sem possibilidades para inferências e deduções, sem sussurros na sala, nem ruído nas paredes do quarto trancado. Isso sim era mais que segredo! Era o silêncio da alma! Sentada ao seu lado, eu percorria a mesma distância na vã tentativa de descobrir aonde iam ou de onde vinham seus pensamentos. Entretanto, o que a paisagem me oferecia era a imagem em miniatura de um tropeiro solitário a conduzir sua tropa através da trilha da montanha da cratera. Seus cavalinhos desciam o morro sustentando balaios, que certamente estariam carregados com  lenha a ser entregue na carvoaria da usina. O devaneio me levava a imaginar que eles desapareceriam na escuridão da noite: seriam tragados para o fundo da cratera, levados pela enxurrada da chuva torrencial. Os relâmpagos já riscavam o céu e nuvens pesadas vinham se desenrolando. Quando a tempestade desabasse, eu estaria no aconchego da minha casa. Lá fora, o vento subjugaria os eucaliptos a dançarem malucos, inclinando-se ameaçadoramente sobre os telhados das casas. A luz se apagaria. Papai tatearia até a cozinha e voltaria com a lamparina acesa. Mamãe se ajoelharia no chão de madeira crua e nós imitaríamos. Em meio às trovoadas, seus lábios clamariam por socorro: “São Jerônimo, Santa Bárbara, acalmai a tempestade!” Mas voltando à paz do entardecer, quem sabe meu pai também pensasse algo semelhante, como por exemplo, na enchente das goiabas? Nas gabirobas e araçás do campo? Sonharia em ir morar sozinho numa cabana à beira do rio? Em pescar o maior dourado para pendurar a cabeça na parede como um troféu? Ou só estaria se maravilhando com o cenário? Eu perscrutava inutilmente.
“Pai, como foi que o senhor pescou aquele jundiá enorme”? Eu sabia como trazê-lo de volta. Papai sorria, erguia-se da cadeira, fechava a janela para impedir a entrada das mariposas; virava a chave do fio que pendia do teto e sustentava a lâmpada, acendendo a luz da sala e voltava a sentar-se. Brilho novo no olhar. “Ah! Essa foi mesmo uma boa pescaria…” E a narrativa unia minha família, que até então era composta por papai, mamãe, Célia, Marília e eu.

Afora as conversas das vizinhas, os discursos das visitas, as prosas dos compadres, era na redoma de meu lar que as palavras se perpetuaram para a construção da vida. Algumas eram intempestivas e ameaçadoras. Outras eram suaves como sussurros e soavam como músicas. Havia choros e gargalhadas, gritos e cantilenas no interior da minha humilde e rica moradia. Havia ainda aqueles momentos em que o falar se tornava desnecessário, bastando estarmos juntos, sentindo as tênues vibrações da alma. Nesses momentos, só minha mãe interrompia o silêncio para dizer baixinho que os anjos estavam passando.
Passavam anjos…

(Crônica lírica) 09/06/2020

 

Zaira Belintani
Enviado por Zaira Belintani em 27/11/2020
Alterado em 20/08/2024
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