QUANDO ELE PARTIU
Quando ele partiu sem aviso nem despedida, tive que recomeçar, reaprender a caminhar. Vida mais sem graça. Não raramente eu me pegava guardando para ele uma fatia de bolo, fazendo seu prato para deixar no canto do fogão. Papai gosta disso, papai não gosta daquilo. Todas as tardes pelo resto da vida eu o esperaria.
A casa o esperava.
Eu tinha certeza de que a qualquer momento ele entraria pelo portão com seu andar manso e cansado, os cabelos lisos escuros, olhos claros, resilientes, a fala suave.
Mas ele nunca voltou.
Se há uma escola que nos ensina a lidar com as perdas, é a escola da vida. Não há como evadir. O Mestre Tempo trabalhou muito nas feridas. Aos poucos meu cérebro foi processando, reciclando e quando eu me dei conta, estava desarmada e deixei de brigar com o destino. Hoje, entendo que durante a vida toda papai estava se despedindo. Nas vezes em que contava suas histórias; quando eu andava a seu lado a caminho da casa da vovó, ele segurando firme a minha mão; quando ele retirava o casaco para me cobrir e me levava no colo, de volta da Hora Santa (eu não entendia as orações nem os cânticos; ficava sentada apreciando a arte barroca, até o relógio da igreja badalar a meia-noite e a adoração dos Irmãos do Santíssimo terminar). Na escuridão da estrada, eu dormia abraçada ao seu pescoço, a cabeça reclinada sobre seu ombro.
Aquela aventura aos seis anos, em que eu ousei descer pela escada de corda até o fundo da cisterna onde ele me aguardava, essa foi uma experiência fascinante. Ele sempre esteve ao meu lado, inclusive nas situações mais adversas, quando o mundo parecia contra mim.
Infinitos momentos que eu vejo agora como uma espécie de despedida em contagem regressiva, que se enserrou de repente, ao anoitecer da quarta-feira do dia 17 de julho de 1985, quando papai desapareceu para sempre, sem ter escolha.
Eu escolhi perdoar a quem o atropelou, por dois motivos: porque a mágoa é um fardo que só serve para nos atrasar, e porque a essa pessoa já basta o fardo que é obrigada a carregar. Não propriamente pela culpa no acidente, isso não há como julgar, mas por ter escolhido fugir, deixando a vítima sem socorro.
Imagem (Zaíra Belintani): Amanhecer no sítio Porteira Branca